Camaradas e amigos
A ideia da elaboração deste dossier “As privatizações. Contornos de um processo que precisa de ser revertido” surgiu da necessidade de sistematizar elementos fundamentais de um processo que já vai longo, com quase 5 décadas e que foi, e é, um eixo central da contra-revolução e do seu objectivo de reconstituição do capitalismo monopolista no nosso País.
Uma ideia que ganhou redobrada importância quando no final do ano passado o Governo PSD/CDS anunciou, na discussão do Orçamento de Estado para 2025, a criação de um grupo de trabalho para proceder ao levantamento das empresas do Sector Empresarial do Estado, visando a sua privatização. Esse grupo de trabalho foi constituído e as suas conclusões estavam previstas para final de Março deste ano, e só não foram conhecidas porque houve a dissolução da Assembleia da República e a realização de eleições antecipadas. Entretanto a expressão eleitoral e institucional obtida pelos partidos que suportaram e defendem as privatizações, associadas à acção do Governo e às iniciativas que este já tomou, como a privatização da TAP, confirmam aquilo que já antecipávamos: está em marcha um novo pacote de privatizações que precisamos de combater desde já.
Este é pois um livro de denúncia e de combate. De denúncia dos objectivos e dos interesses que estiveram por de trás das privatizações, das consequências e dos crimes que foram cometidos contra o País, das cumplicidades e responsabilidades políticas presentes, das mentiras e ilusões disseminadas para facilitar a sua concretização.
Mas este é também um livro de combate. De combate aos interesses do grande capital e aos seus objectivos de assalto aos recursos nacionais. De combate à ideologia neoliberal e à política de direita que a concretiza. De combate às opções do governo PSD/CDS que é suportado pelo Chega e a IL, e viabilizado pelo PS. De combate a novas privatizações e de luta pela reversão de muitas das que foram realizadas e por um SEE que esteja de facto ao serviço do Povo e do País.
No roteiro que procurámos construir nesta abordagem, partimos da realidade herdada do fascismo, identificamos os avanços alcançados e as possibilidades abertas pela Revolução de Abril e o que significou a liquidação do capitalismo monopolista e concentramo-nos na contra-revolução e nas privatizações que lhe deram suporte, identificando de forma sumária as dezenas de empresas e sectores que foram entregues ao grande capital. Podemos dizer que cada uma destas privatizações daria um livro, como aliás já fizemos em relação ao BES, à TAP ou à ANA, que tiveram esse tipo de tratamento por parte do PCP. Mas o que este dossier quer sublinhar é sobretudo a identificação de um processo. Um processo, metodicamente preparado e executado a partir do poder económico e do poder político que a ele se submeteu e submete, e cuja compreensão é fundamental para saber o País que temos, os seus problemas, défices e estrangulamentos, e antecipar novas ameaças que aí estão.
Um processo que não estando desligado da evolução internacional e de um quadro mais geral marcado pela voragem neoliberal que se assentou com o fim da URSS, teve e tem as suas particularidades em Portugal - um País com uma economia fragilizada, dependente e periférica.
As suas consequências e impactos são hoje feridas abertas na realidade portuguesa. Não há dimensão na vida do nosso povo, dos trabalhadores, dos pequenos e médios empresários, onde não pesem os impactos negativos desse processo. Não há sector de actividade económica e social, ou região do País, em que não estejam visíveis os impactos deste assalto aos recursos nacionais. Quando falamos de banca, de seguros, de energia, de comunicações, de transportes, de indústrias básicas, de autoestradas e aeroportos, estamos a falar de sectores estratégicos para o País e transversais a toda sociedade que afectam a actividade produtiva, o ordenamento do território, os preços dos bens e serviços essenciais, as receitas do Estado, os direitos dos trabalhadores, as opções estratégicas que cada país soberano é chamado a assumir.
Como é que podemos desligar as privatizações, que promoveram milhares de despedimentos, fragilizaram direitos individuais e colectivos, liquidaram contratos colectivos de trabalho, do facto de sermos hoje um País de baixos salários e pensões?
Como desligar os preços da habitação e as dificuldades porque passam milhões de pessoas para conseguirem ter uma casa para viver, do papel que assumiu uma banca privada que fez do imobiliário uma fonte fundamental dos seus escandalosos lucros?
Como é que podemos ignorar que do outro lado dos lucros da GALP, da EDP, da REN, da PT ou da banca, tudo empresas públicas que foram entregues ao capital estrangeiro, está o facto de sermos um dos países da Europa em que se paga mais pela energia, pelas telecomunicações ou em comissões bancárias?
Como é que podemos esquecer o facto de depois de um criminoso negócio que foi o da privatização da ANA, o País tenha perdido mais de 20 mil milhões de euros para a multinacional francesa Vinci, e que, para servir a gula dessa multinacional, em vez de se construir um novo aeroporto se esteja a aumentar o tráfego e a expandir o Aeroporto de Lisboa?
Como é que se pode continuar a esconder que depois da privatização e posterior destruição da Sorefame, Portugal tenha deixado de fabricar comboios e que nos últimos 20 anos não tenha comprado nenhum novo comboio apesar de fazerem falta todos os dias?
Como aceitar que o orçamento das Infraestruturas de Portugal seja no fundamental para pagar os contratos das Parcerias Público-Privadas - PPP, em vez de ser para investir nas nossas estradas e na ferrovia? Ou que mais de metade do orçamento do SNS seja também ele entregue em larga medida aos grupos económicos que fazem da doença um negócio?
Como é que os correios, que estiveram nas mãos do País durante séculos, e foram factor de confiança, presença no território e serviço público, são hoje vistos pelas populações? Com cartas e encomendas que demoram hoje mais a chegar do que há 20 ou 30 anos atrás, com o encerramento de centenas de balcões e a venda do património centenário dessa empresa para pagar dividendos aos accionistas dos CTT.
Como é que se pode acreditar na dita superioridade da gestão privada, todos os dias endeusada, quando estamos ainda a pagar a factura dos mais de 16 mil milhões de euros de recursos públicos para tapar os buracos da corrupção e da gestão fraudulenta que os privados trouxeram para o BPP, o BPN, o BES, ou o BANIF?
Como aceitar uma política fiscal cada vez mais injusta, onde o imposto que mais desceu nos últimos anos foi o IRC, passando de 35% para os actuais 20%, beneficiando sobretudo os grupos económicos e as empresas privatizadas, prejudicando e muito o País, retirando-lhe recursos que são necessários aos serviços públicos e às funções sociais do Estado?
Como é que nos podemos surpreender com o nível cada vez mais periférico e dependente da economia nacional, quando, para lá da perda de soberania monetária e orçamental decorrente do Euro e das fortíssimas imposições da UE, temos também as principais empresas e sectores estratégicos a ser comandadas a partir do capital estrangeiros?
Como é que olhamos para as mentiras do dito capitalismo popular, que faria de cada trabalhador um accionista rico e feliz, ou para os diziam que as privatizações permitiriam criar grandes grupos económicos nacionais, “centros de racionalidade económica” como chegou a ser dito, quando o que hoje temos é uma profunda concentração dessa propriedade e a confirmação de que uma grande empresa no nosso País, ou é pública ou não é nacional?
Estas são consequências na vida e no território resultantes do País ter deixado de ter um Sector Empresarial do Estado com uma dimensão capaz de responder a necessidades fundamentais do povo português, e que procuramos ilustrar e demonstrar com factos ao longo do livro.
Sabemos bem que, apesar das nacionalizações e dos avanços alcançados com o 25 de Abril, o poder político, os Governos do PS, PSD e CDS, nunca permitiram verdadeiramente que as empresas públicas assumissem o seu papel. Aliás, uma das principais características deste processo, para além do subfinanciamento e endividamento das empresas públicas promovido por sucessivos governos, foi o facto de a principal missão atribuída a muitos dos conselhos de administração dessas empresas públicas ter sido a de preparar a sua privatização. Como aliás está a acontecer hoje com a TAP. Mas a destruição de uma parte significativa deste Sector Empresarial do Estado, apesar das conhecidas insuficiências e falhas de uma gestão que esteve sempre distante do interesse público, fragilizou ainda mais o País, retirou-lhe recursos e capacidades, e condicionou dramaticamente o futuro.
Ainda esta manhã, numa antecipação da apresentação deste livro, uma rádio nacional fazia-nos a sacramental pergunta: o PCP já fez as contas de quanto custa a renacionalização do que foi privatizado? A pergunta não é nova e a intenção é conhecida: desviar o foco dos impactos das privatizações e agigantar o papão dos custos para os contribuintes, para afastar qualquer possibilidade de encarar uma política diferente daquela que está em marcha.
Mas o que precisamos de saber é qual o custo para o País do processo de privatizações e se é sustentável manter esse rumo. Tomemos por isso como referência um dos dados revelados no livro. Desde 1997, como resultado do processo de privatizações, o rendimento nacional bruto (que é de grosso modo a parte da riqueza produzida que fica no País), é sistemática e crescentemente inferior ao PIB. Ou seja, há cada vez mais riqueza que sendo criada em Portugal vai para os bolsos das multinacionais e dos grupos económicos estrangeiros
Num período longo de quase 30 anos (1996-2024), abrangendo a quase totalidade do período das privatizações, saíram do País, sob a forma de dividendos, lucros distribuídos e juros 336 mil milhões de euros, dos quais uma parte muito relevante corresponde à exportação de lucros de empresas públicas entretanto privatizadas.
Só na banca, entre os lucros que não ficam no Estado, os impostos que deixam de entrar com benesses que só a banca tem, o Estado perde receitas anuais de muitos milhares de milhões. Sem contabilizar o mais importante: a perda de possibilidade de direccionar esses fundos para o investimento não especulativo.
É por isso incalculável o valor do assalto aos recursos nacionais resultante das privatizações que continua a aumentar todos os dias. Um assalto que querem aprofundar.
Depois de 48 anos de processo contra-revolucionário, e depois de 30 anos de processo reprivatizador, o Sector Empresarial do Estado é ainda uma realidade. Apesar de confinado, o SEE conta ainda com grandes empresas como a TAP, o Grupo RTP, a CGD ou as Águas de Portugal, a par de outras de menor dimensão e de diversas participações do Estado que perduram, como é o caso da Petrogal. Ao todo, estas empresas representam quase 50 mil trabalhadores, obtiveram no último ano um resultado líquido positivo de mais de 1,6 mil milhões de euros. É aquilo que resta depois da fúria privatizadora, e que é manifestamente insuficiente para poder preconizar o papel que a Constituição lhe atribui, mas cuja defesa deve ser o ponto de partida para a reconstrução de um SEE que possa dar um impulso à economia e à sociedade portuguesa.
É por isso que assumimos neste livro, e na acção política quotidiana, a defesa do SEE e da recuperação do controlo público de empresas e sectores estratégicos, como componente essencial da ruptura com a política de direita e da política patriótica e de esquerda que propomos ao povo português.
Para responder aos problemas nacionais, para elevar as condições de vida, para desenvolver o País é preciso uma política diferente daquela que PSD, IL, Chega e também o PS querem continuar a impor.
Precisamos de uma gestão das empresas e serviços públicos comprometida com os interesses nacionais. E para isso é fundamental dar sentido e missão estratégica ao Sector Empresarial do Estado, como a própria Constituição da República determina, em vez de preparar a sua venda. É necessário remover restrições, propositadamente impostas às empresas públicas, que se colocam na contratação de trabalhadores, no plano salarial, nas limitações a decisões operacionais, libertando-as de um espartilho que não existe no sector privado.
Precisamos de recuperar para o País aquilo que é do País por razões de planeamento democrático da economia; pela necessidade de garantir a segurança no abastecimento do País e o desenvolvimento da sua capacidade produtiva e redução da dependência externa; pelo imperativo de assegurar uma transição energética adaptada à economia nacional e socialmente justa; para assegurar o Ordenamento do Território e a coesão territorial; pela necessidade de regular e controlar preços e desta forma proteger o poder de compra e a actividade das MPME; pela exigência de defesa dos direitos dos trabalhadores e a sua valorização; pela necessidade de o País se desenvolver no plano científico e tecnológico.
Tudo o que aqui foi dito, e vai ser dito, é uma pedrada no charco perante a onda neoliberal, militarista e reaccionária que aí está. Mas nos tempos que correm, é preciso coragem para dizer não.
É preciso coragem para enfrentar a direita e os interesses e projectos do grande capital. Uma coragem que sabemos não estar só nos comunistas, está também nos trabalhadores e no povo, nos democratas e patriotas que aspiram a um Portugal com futuro